terça-feira, 1 de junho de 2010

Tema de Redação do Primeiro Simulado do Gauss (29/05/10) - Comentários


UEM 2006

QUANDO SE JUSTIFICA MENTIR?
Para o texto NARRATIVO, atente para as seguintes instruções: redija a narrativa em 1.ª ou 3.ª pessoa, de forma que o conflito seja desencadeado por uma MENTIRA; além do conflito, o texto deverá ter personagens e desfecho adequados ao tema.

Excerto 1
(...)
Os pais ensinam os filhos desde cedo que mentir é muito feio. Que gente mentirosa é mal vista pela sociedade.
Mas vamos falar a verdade. O que mais existe no mundo é mentira (...)
Mentir é considerado o quinto pecado capital, mas quem já não teve de lançar mão desse recurso para se sair de uma situação complicada? Muita gente acredita que, se for uma mentirinha inofensiva que não prejudique ninguém, não faz mal. Mesmo que isso funcione algumas vezes, mais vale uma verdade dolorida do que uma mentira mal contada.
(...)
O Diário do Norte do Paraná, 1.º/04/2005.

Excerto 2
(...)
A interpretação da mentira depende, portanto, do “código de ética” seguido pelo mentiroso. Para o utilitarista, por exemplo, a mentira se justifica quando, através dela, se produz maior felicidade. Esse é o caso do comentário que se faz ao moribundo (“como você está bem ...”) ou do consolo do dentista (“não vai doer nada ...”) ou da formalidade dos adversários quando se encontram em público (“que prazer em vê-lo ...”) ou mesmo do final da carta desaforada (“com a minha alta estima e elevada consideração ...”).
(...)
José Pastore
Folha de S. Paulo, 20/05/1987.
Disponível em http://www.josepastore.com.br/artigos/cotidiano/057.htm


Comentários:

HILA, Cláudia Valéria Dona. “As representações do contexto de produção da redação do vestibular”. In: http://www.escrita.uem.br/escrita/pdf/cvdhila5.pdf

“(...) A1 revelou que houve uma prova de redação da Universidade Estadual de Maringá (UEM), cujo tema era “Em que situações se justifica mentir?”, em que ela defendeu que a mentira não se justificava em hipótese alguma. Foi mal na prova e revelou ter assumido essa posição pois acreditava que “o corretor não gostaria de dissesse outra coisa”. Vê-se que é a imagem de um corretor moralizante que acabou por reger as escolhas discursivas e argumentativas da candidata, anulando sua própria potencialidade argumentativa.”

- O pensamento da aluna A1, citado neste artigo, parece ter guiado boa parte das produções narrativas neste simulado. Ainda que os alunos tenham atendido à expectativa de criar um personagem “mentiroso”, muitas das redações procuravam justificar essa mentira de um modo bastante clichê. Ora estávamos diante da garota que mentia para salvar a vida dos pais, ora diante dos pais que mentiam para preservar as ilusões dos filhos. Além disso, em muitas redações as mentiras eram punidas severamente, com acidentes, mortes trágicas e castigos prolongados. Nessas produções, que obedeceram cegamente ao clichê, o trabalho com a coletânea foi quase nulo. Releiam o tema da UEM: os textos abordam justamente a relatividade do mentir.


Exemplos de narrativas possíveis:

Pequenas Mentiras
(Jan Traumer)

A chuva, fina e fria, cai intermitente por mais de dois dias tristes. Quando a temperatura diminuía muito, as pequenas gotas, que precipitavam tal qual bailarinas, girando no ar, formavam flocos de neve. Tão frágeis que derretiam ao tocar o solo. Havia mais de três semanas que eles não viam o Sol, encoberto por nuvens pesadas vindas da Sibéria, alguém disse. Na primeira semana, houve uma nevasca terrível, e a neve se acumulou em camadas, nas calçadas, telhados, árvores, tudo tinha ficado branco. Quando a neve começou a derreter, havia lama em todos os lugares, além de placas de gelo no chão, que não se desmancharam porque a temperatura voltou a cair. E naquele domingo havia chuva, fina, fria, intensa. Eles queriam sair, ver a rua. Patrícia queria tomar um sorvete na Piazza di Roma, a sorveteria mais famosa da cidade. No último verão, quando não estavam fora da cidade, iam todos os domingo naquele estabelecimento que vendia felicidade em bolas de chocolate, e em outros sabores. Resolveram sair de casa, e saíram feitos astronautas, com o corpo coberto por várias camadas de roupas.
Caio havia aprendido a mentir com Patrícia. Ela lhe contara muitas histórias. E ele não podia acreditar em todas, parecia ser fantasia, mania de grandeza, loucura. Fingira acreditar. Aceitava ouvir tudo, pois não tinha mais ninguém para lhe fazer companhia naquele inverno. Não tinha com quem caminhar nas ruas geladas, sorvendo um sorvete de creme e flocos, de braços dados. Mas aprendia com as histórias dela. Anos depois ele agradeceu tê-la conhecido. Todas às vezes, quando foi necessário inventar uma história, ele se lembrava dela, sua professora de mentira. Uma vez, quando caminhavam por uma estrada de chão batido, indo para um castelo medieval dentro de uma floresta de pinheiros, ele resolveu contar uma história. Resolveu inventar uma história fantástica, para ludibriá-la. Mas ela, no seu jeito de moça recatada, e ao mesmo tempo espevitada, era muito mais esperta do que ele, e percebeu, que o rapaz magro, e sensual que lhe dava o braço, que às vezes dormia em seu quarto, que parecia ser o seu melhor amigo, estava lhe contando uma mentira. Eles discutiram, e ela pediu que nunca mais lhe mentisse. Ele com o orgulho de homem jovem ferido, prometeu a si mesmo, ainda com o rosto rosado, resultado da vergonha por ter sido desmascarado, ao ser pego na mentira, que ia enganá-la. Achou que poderia produzir uma mentira perfeita, a aquela que ela não desconfiaria.
No domingo, quando desciam a rua em direção ao rio, ainda não tinham terminado de tomar os seus sorvetes. Ela vertia algumas lágrimas, estava triste, e o tempo não ajudava. Ele começou a contar uma história, que teria se passado na ausência dela, quando estivera viajando para o campo. Ela riu ainda com o rosto molhado, das coisas que ele falou, mas pediu que ele explicasse novamente a história, pois não tinha entendido direito alguns fatos. Na segunda exposição, ela percebeu que ele mentia. Ela parou na calçada, no momento em que iam atravessar a rua. Ele foi, ela ficou. Nunca havia inventado uma história, nem contado uma mentira para ele. Mas ele, inseguro, sentia-se inferior a ela. Armou-se num mundo imaginário que não existia, único mundo onde conseguia forças para estar ao lado dela em igualdade. Ele aprendeu a mentir com ela. Ela nunca mentiu para ele. Depois daquele dia só se viram esporadicamente, se cumprimentavam com os olhos, quando se viam em algum lugar. Quando ele atravessou a rua, da última vez em que estiveram juntos, ela deu meia volta e retornou pela mesma rua, subindo a rua em direção à sorveteria. Precisava de mais uma bola de chocolate, talvez duas ou três. A chuva fina e fria havia se transformado em pequenos flocos de neve. A paisagem, com o casario antigo ao fundo, era linda. Ela tinha novamente lágrimas nos olhos, mas sentia-se feliz, com toda a sua verdade.

In: http://einmalistkeinmal.blogspot.com/2008/02/pequenas-mentiras.html

O homem que adorava mentir
(Alexandre Lana Lins)


Úmero resolveu contar a grande mentira da vida dele. Esta mentira seria a consagração das décadas em que viveu mentindo. Uma grande mentira que mobilizaria aquela cidade do interior, onde viveu toda a sua vida. Úmero sempre mentiu. Aliás, nasceu mentindo. Ao invés de chorar, riu quando o médico lhe deu palmadas no bumbum. Era o sinal. Seria um grande zombador. Achava que a vida seria uma grande festa! No berço, chorava de fome, mas quando a mamadeira era colocada em sua boca, ele ria. E como ria! Era mentira!

Na escola, todo dia contava uma mentira para os seus colegas. Alguns professores o colocavam de castigo e diziam: “Por que não escreve histórias?" Mas não, Úmero queria zombar, rir da vida e contar mentiras. Inventava mil histórias, porém quantas eram prejudiciais.

Adolescente, teve as primeiras namoradas à base da mentira. Não duravam muito os relacionamentos. Claro, as mentiras logo eram desmascaradas. Mas sem mulher ele não ficava. Era um galã. Tocava violão, fazia serenata e mentia. Assim, conquistava as mulheres.

Adulto, não parava em emprego nenhum, pois logo a sua fama de mentiroso se espalhou. Não casou. Que mulher queria casar com um mentiroso? E quando se viu diante do desemprego e da falta de oportunidade, um “amigo” lhe convidou para ser político. Ah! Ai foi o momento de glória! Como mentia bem esse filho de uma égua. Venceu várias eleições, mentindo. Não cumpria nada do que prometia. Era um eloqüente mentiroso no coreto de sua cidade, bracejando as promessas invisíveis.

Até que o povo cansou e ele não conseguiu se eleger mais a nenhum cargo. Mas ficou rico. Enquanto procurava outras ocupações, continuava a mentir. Até que ninguém lhe deu atenção mais. Úmero, então, resolveu contar a grande mentira da vida dele. Esta mentira seria a consagração das décadas em que viveu mentindo. Espalhou para toda cidade que só tinha seis meses de vida. Inventou uma doença e foi tão verdadeiro que todos acreditaram. Podia ter sido um grande ator. Chorava nos bares e nas esquinas da cidade. Os religiosos rezavam pela sua saúde e Úmero passou a ser tratado como rei. O grande cidadão e prefeito que aquela cidade já teve!

Até que um médico da capital chegou à cidade e descobriu toda a mentira. E a notícia logo foi se espalhando. Pronto! A vida de mentiroso de Úmero foi destruída. Foi levado à fogueira, assim como o Judas nos sábados de aleluia. Ninguém lhe falava mais e nem um “bom dia” recebia. Foi definhando, acreditou na sua grande mentira e dizia que faltava pouco para morrer. Até que morreu. No dia 1º. se abril. Morreu com a doença que havia inventado. O povo daquela cidade só soube por um cartaz redigido com uma velha máquina de escrever na porta do bar. Ninguém foi ao enterro. Só ele e o coveiro. Afinal, ninguém acreditou que Úmero tinha realmente morrido. Nem o padre. Era mais uma grande mentira!

In: http://www.brasilwiki.com.br/noticia.php?id_noticia=4718

A moça que descomia mentiras
(Elza Fraga)


Ela foi uma criança criativa, uma adolescente perigosa.
Virou uma adulta mentirosa.
Tinha duas escolhas na vida:
Escrever livros, contando as histórias que inventava da vida de amigos, parentes, vizinhos e afins, e fazer uso das suas mentiras próprias; ou virar atriz e viver as mentiras alheias, sem ter que sair machucando Deus e o mundo e mais um pedaço, melhor de tudo, sem sentir culpa no cartório.
Talento pouco na arte de escrevedora e de intérprete, e muito pra invencionices oralmente fantasiosas, nem escreveu o livro, nem virou atriz.
Virou foi uma bulímica da melhor qualidade.
Vomitava as mentiras mal digeridas como quem vomita a folha de alface do almoço.
Ficou anoréxica a bichinha...
Não lhe parava mais nem uma mentirinha, das pequenas sequer, no estômago!
E definhava a olhos vistos sem que se pudesse fazer nadica por ela.
Todos se surpreendiam com a rapidez que criava mentiras novas pra colocar no lugar das vomitadas...
Era a ânsia de prender a vida, que lhe escapava pelas paredes da garganta, nos dedos.
Moribundou jovem, coitada!
Mas continuou a andar por aí, a se encher de ar e de invencionices, sofregamente.
O corpo ainda se locomovia, feio, curvado ao peso das mentiras, olhos fundos na face cadavérica...
Mais se arrastava do que caminhava, mas ia em frente.
Até que num dia chuvoso uma mentira, das grandes, se lhe entalou na garganta, não conseguia descer goela abaixo nem por decreto...
Ficou roxa , perdeu o ar, esverdeou-se, se foi de vez!
Até hoje perguntam de que partiu a tal moça, nessa mania que o povo tem de achar que todo cadáver tem que ter causa mortis.
Respondo que morreu de mentira grande demais pra ser engolida.
Sabe que ninguém me acredita?!

In: http://www.gargantadaserpente.com/coral/contos/ef_moca.shtml